quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O vestido


A chuva cai, o vento assobia, o velho chora.

Sentado, a três passos do precipício, pousa a cabeça entre as palmas das mãos…e chora.

O mar enraivecido, ruge. Há muito tempo que deixou de ser um bom ouvinte, esse mar.

A noite é escura, sem lua; as estrelas decidiram não brilhar.



«Comprida é a estrada por onde os carros já não passam;

Altos são os carvalhos onde os pássaros já não pousam;

Suja é a água daquela fonte de onde já ninguém bebe, enojados.»



Ele esconde a cara mas eu consigo vê-lo. O cabelo continua grisalho, em desalinho, e as mãos continuam repletas de dedos compridos, limpos, sem rugas.

Sempre disse que ele teria dado um bom pianista…



«O rosto.»



Esse sim mudou. Está mais velho, mais cansado. Os olhos negros e inchados cobrem-se de lágrimas gordas que caiem sem destino aparente.

Sempre disse que no fim tudo é água…até mesmo a dor.



«A chuva já não o molha;

O vento já não o toca;

A vida já não o quer.»



Ele olha para mim em modos de súplica. Não deseja ficar sozinho nos minutos finais da sua existência. Eu sento-me ao lado dele.

O meu vestido novo está sujo, manchado pela lama, mas isso já não é importante… A verdade é que as estrelas já não conversam comigo e o violino há muito que deixou de tocar. Também para mim a música da vida se finda.

A razão esvaneceu-se com a loucura e o vazio ganhou o primeiro lugar.

Ele põe-se de pé, a custo, e olha para mim, expectante.

Eu brindo-o com o meu sorriso mais triunfante, o meu melhor sorriso em anos, e avanço:



« -Vamos a isto.

- Que dizes? Porque me dás a mão? O teu vestido está todo sujo…

- Esquece o vestido…não é importante.

- O que é importante então? E porque raio insistes em me dar a mão?!

- Calma. Não tenhas medo...esta noite morremos juntos.

- Mas o teu vestido

- Que importa?

- Vai trocá-lo… Esta noite morres bonita.»




1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei! O blog está lindo!
Parabens! Continua :)