quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O último Adeus


Foi num fim de noite, como qualquer outro, que a Menina finalmente ousou empurrar a porta, entreaberta, do quarto do Homem. Lá estava ele: sentado na beira da cama, olhos baixos, braços sobre as pernas e a mesma ladainha sussurrada a ninguém. Durante alguns meses, perguntara-se com quem falava ele. Deus? Nunca parecera crente, apesar de também nunca ter dito nada em contrário. Falaria ele com Deus? Nunca o fizera antes. E porque chorava? Não tinha chorado das outras vezes que surpreendera o ritual, mas nas últimas semanas tinha sido uma constante. Não era um choro ruidoso, não era um choro convulsivo. Era um chorar repleto de lágrimas pequeninas e intermitentes, que caíam devagar, brilhando quando a luz as atravessava, arrastando-se pelo rosto, cobrindo-lhe cada poro da pele, impedindo-os de respirar. Nunca as afastava; era como se lhes quisesse sentir o sabor nos lábios, beber-lhes a mágoa directamente de dentro de si para dentro de si.

«A Sede que não morre nunca…»

Em passos curtinhos entrou no quarto. Ainda que a deslizar, ele deu por ela. Levantou a cabeça e finalmente limpou as lágrimas. Houve uma pausa: o tempo parou perante o confronto. Na cara do Homem não se leu espanto, nem vergonha, nem comoção.

«O rosto de alguém violado pelo vácuo.»

A Menina aproximou-se e sentou-se ao lado dele, naquela cama que não rangia: nem hoje, nem nunca desde aquele dia em que a vida na casa parara de existir; o dia em que Ela tinha partido de vez. O dia em que o som deixou de existir e o silêncio absorveu a rotina.

Quis tocar-lhe na mão, sentir-se os pensamentos com a ponta dos dedos. Deveria falar-lhe? Perguntar-lhe com quem falava?

- Não queria que me visses assim.

Ele antecipou-se.

- Estavas a falar sozinho?

- Não. Ou talvez sim, não sei bem. Não devias estar a dormir?

- Com quem estavas a falar?

Pausa. Finalmente a Pergunta. O tempo volta a correr, devagar.

- Com Ela.

- Então e porque é que estás a chorar? Já não gostas Dela?

- Choro porque não me responde.

- Sabes, eu também lhe falo as vezes, mas não choro. Porque é que tu choras?

- Já te disse, estou cansado de falar sozinho. Estou farto de existir sozinho. Nunca tens vontade de chorar quando falas com Ela? Não sentes saudade?

- Sim, mas não choro.

- Ela responde-te?

- Não.

- A mim também não.

- Então pára de Lhe fazer perguntas e lembra-te de que eu ainda estou aqui.

O Homem saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Pegou nas chaves e partiu para sempre: longe da Menina, longe da única coisa que ainda lhes era comum. O seu mundo virara-lhe as costas e agora era ele quem virava as costas ao mundo Dela.



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É nisto que resulta uma aula teórica de Direito das Obrigações com muito pouco interesse. Hoje deu-me para escrever.

1 comentário:

John disse...

Bem que o Prof. olha muito para o tecto, enquanto dá a aula eu já tinha reparado...que isso inspirava pessoas...epah nem tanto! Passarei a estar mais atento a obrigações.

Estupendo...melhor? Só mesmo a "permanente" de uma colega minha.

Escrevendo, Português perceptível, dos teus melhores textos...Parabéns.