domingo, 30 de março de 2008

De volta às origens

Lembro-me de ser mais nova e descobrir uma antologia poética que o meu pai tinha perdida entre os milhares de livros de filosofia que habitam a minha casa... lembro-me de ler este poema que, esta noite, voltei a ouvir num café em Setúbal... e que com muita vergonha minha, e apesar de saber trechos de cor, confudi com Pessoa. Nunca fui boa com nomes. Mas o poema... esse ainda estava comigo.



Cântico negro

José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!




***


Porque também "eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...".

sexta-feira, 21 de março de 2008

Zero Horas




Tenho, na minha garganta, um segredo por te gritar

Que me queima por dentro e me faz acreditar:

No dia em que souber que o meu mundo acabou

Vou soprar-te esta verdade e perguntar-te quem eu sou.



«Na madrugada em que, por um acaso, nos encontramos à beira rio, soube nos teus olhos que tinhas o mesmo segredo.
O teu grito era o meu grito.»



Entre passos de fantasma e restolhar de alucinação,

Pergunto-me se me segues enquanto corro na escuridão.

Se és a droga que me inebria e o dedo do destino,

Prende-te à minha loucura e corre no desatino...



«... comigo.

Seremos loucos e sozinhos.»



Passos acelerados: daqui à morte, uma pulsação!

Elevemo-nos na noite e façamo-nos turbilhão.

Beija-me, agora que morro, antes que te tenha tempo de te soprar

A verdade de que sou feita e antes que te possa perguntar...

...Quem sou eu?



«Deitámo-nos lado a lado e existimos, ao mesmo tempo, no coração do mundo.

Fomos a Meia-Noite do dia seguinte que nunca nasceu.»



Somos o mesmo, tu e eu.

A linha do horizonte.

Céu e Mar que se tocam.

Somos o arrepio gelado numa madrugada de Verão.

O último sonho da manhã.

O silêncio da cidade na hora de ponta.

Somos os anos.

O bater do coração de um morto.

O estagnar das horas.

Somos o cigarro que nunca se acende.

O preto.

O branco.

Somos cinzento.

A memória.

Eternos e efémeros.

Somos para sempre até ao momento em que para sempre paramos de ser.

E acalmamos o grito. E abraçamos o nada.


E fomos.



segunda-feira, 17 de março de 2008

Blindfold

Preciso cortar as amarras das fantasias que assolam os recantos da minha mente;
Viver o que há para ser vivido;
Esquecer o que há para ser esquecido;
O que não me foi destinado e me traz presa por vontade.

Preciso de abrir os olhos e Ver.
Não o que quero ver... mas o que existe, de facto, para ser visto.

És a cegueira que me mata e a tontura que me embala no momento em que os meus olhos se rasam de água e me deixam a vista turva.
És o que há para ser vivido e esquecido num só.
És tudo e és nada. Existes e és farsa.

Sonhas de olhos fechados como eu?
Consegues ver-me?

...não.






quinta-feira, 13 de março de 2008

Fuga de viver


Extraviadas cabeças de conquistas distintas

Podres os Homens a pão e nada.

Escravizados ao desencanto,

Exímios na arte da lida cansada.

 

Inaugura há pouco o alvorecer,

E já enfadados, os corpos arrastam trabalho rude...

O sol vai encorajando a fraqueza do ofício,

Aos pálidos rostos isentos de vontade e atitude.

 

Intransigente costume, a que nós, povo resignado,

Contemplamos cada dia pela força do hábito,

Pela demanda silenciosa da indisciplina oprimida

De quem tudo perde por tudo querer.

 

Mas que original culto obriga o ganha-pão?

Distante de porquês aborrecidos e de respostas fatigantes,

Vão sendo Homens e Mulheres simplesmente

Que dessa condição nada extraem senão a fuga de viver!

 

O sol, esse, já se distância do ofício

E a sombra trás a falsa verdade esquecida no tempo.

Mas que viver este de fastio e rotina?

Quando o amanhã anuncia pouco mais do mesmo emprego!

 

A escuridão desperta num ápice...

E o encoberto aponta para o percurso já trilhado pelo amanhã.

Homens e Mulheres capazes de dignos feitos

Vão sendo calejados pela cegueira do voltar a “ter que Ser”! 

domingo, 9 de março de 2008




Risco um fósforo no escuro de mim mesma – incendeio a Razão.

Pego fogo a tudo o que fez sentido nos recantos mais lúgubres do meu cérebro e empurro, com o som do mundo, as minhas lembranças mais remotas.

Elevo-me.

“Mas levo-te no meu sangue.”

Danço na rua, levanto voo – rodopio nos desejos que grito para longe.

Faço amor comigo mesma pelas ruas da Cidade que se esvai em fumaça e que se revolta contra o que eu quero.

Sou chama que arde no vácuo.



“Tu fervilhas nas minhas veias.”


Assobia contra as nuvens – eclipsa o Sol com a sua mão.

Brilha sozinha pelos dois e faz-se constelação.

E de todos os que lhe fogem, embalados pela escuridão,

Fá-los seus prisioneiros, entorpecidos pela mansidão...


"... da minha voz;

Que é a tua voz."



Réstias de esperança – uma Noite que não acaba nunca.

Farrapos de uma memória que palpita no meu peito e que entoa um hino de melancolia na boca da Humanidade.

Condeno-vos a sibilar a tristeza.


Chora, sem lágrimas, um sentimento irreal.

Grita, enraivecida, com uivos de animal.

A Eternidade compadece-se com o sofrimento divinal:

E apaga o Fogo que consome o Deus que ousou amar o Mortal.


E que foi traído.



quinta-feira, 6 de março de 2008


Tudo o que fiz por ti foi em vão.

Agora sei como é saltar para aquele abismo junto da moeda que não tilinta no fundo.

Não existe chão nem para mim nem para ti.



«Mentes que flutuam no início das horas mortas…Verdades deixadas por dizer no momento em que se chora convulsivamente.»



Querer já não basta para se ser feliz.

Tentar também é em vão.

Resta continuar a gritar baixinho por dentro, onde ninguém consegue ouvir;

Onde ninguém se interroga pelo que não se ouve;

Onde tudo é triste porque ninguém se questiona pelo que não se diz.



«Conhecimentos travados à sombra de uma lápide…

Segredo ditos numa lágrima que nos gela.

Luzes intermitentes no caminho para o cume…

Agora o Fogo é o limite.»



Silêncio.

Silêncio.

Cair para sempre.



«Ter medo e querer parar.

Esperar pelo eco que te insulta.

Existir para sempre neste instante?”



Silêncio. Silêncio para sempre.



(17 de Novembro de 2004)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Esquecimento - Dois caminhos

Fechando os olhos vou esquecendo...

a imagem anterior fica momentaneamente gravada na minha memória,

mas por momentos estagna a minha castidade racional.

É bom fechar os olhos, é bom desprezar por instantes a nossa faculdade de pensar,

e tornarmo-nos autómatos da nossa mente, vaguear por meandros questionáveis,

percorrermos atalhos inalcançáveis, buscando e encontrando destinos que julgávamos não conhecer.

Afinal o que somos? E a que “vagão” pertencemos?

Ao que realmente podemos ainda que penosamente influenciar,

aquele que nos permite usar a tal faculdade racional, ainda que de forma condicionada?

O vagão que juramos, todos a pés juntos, pertencer porque cá temos tudo e porque tudo podemos controlar?

Ou pertencemos antes, ao mundo das sete vidas, aquele que rotineiramente alcançamos, quando subitamente fechamos os olhos...

e ao qual caímos por não podermos mais?

Esse incontrolável, inconsolável  e ilógico universo onde convergem os mais profundos e inexplicáveis distúrbios e de onde heroicamente saímos sempre bem, voltando na jornada seguinte mais vigorosos que nunca.

É como se fossemos e viéssemos, prosseguíssemos e regredíssemos, ainda que quando por altura do regresso...

tudo volte à mesma forma, tudo esteja igual à altura que decidimos interromper o percurso.

Mas esta é uma viagem especial, pagamos o preço do tempo, damos por nós e quanto mais percorremos mais pesados ficamos, mais entorpecidos nos sentimos.

A responsabilidade vai fazendo troça de nós, rindo da nossa fragilidade...

A novela, essa, continua...os protagonistas não. 

A noite é vazia e fria, escura e despejada.

Talvez por isso mesmo, todos optem por gostar de pertencer ao vagão da luminosidade, do brilho e do fulgor.

Porém a futilidade do dia, o fluxo da correria e da ligeireza, a ânsia bruta pela cópia,

tiram e voltam teimosamente a retirar, o brilhantismo, a transparência e o aspecto límpido ao vagão de preferência.



 «O que rezas e o que me dizes silenciosamente?

Que coragem me suplicas, quando o desencanto se habitua, e eu, já, não te consigo ouvir?»


Prefiro pertencer à facção minoritária, caber no povoado da diferença,

deixar que não seja eu a controlar o rumo das coisas, eliminando também a possibilidade de outros o fazerem.

Tendo, porém, a convicção que o brilho das estrelas suplanta o aspecto tenebroso da existência corpórea,

e a certeza que a leviandade do quotidiano controlado pela faculdade racional não invada,

a pureza da humilde noite.

Prefiro, enfim, pensar que o espírito das gentes é capaz de terminar melhor a narração de suas vidas, que a fatal faculdade de elas pensarem.

Fechar os olhos é bom…


«Mais não te consigo dar...leva, tudo, o que de mim restou!»

«- Mas diz-me, porque me olham esses olhos escuros e preguisos?

Porque choras, tu, assim ?

- Choro, porque já não te sinto vida…choro porque deste lado já não sou eu.»