Se fechar os olhos sem força, consigo ver-me ainda entrar por aquela porta e mergulhar no burburinho da tua rotina. Ainda hoje, quando inspiro fundo, sinto o cheiro do café que derramei na tua camisa; Sinto com a tua pele a queimadura que te ofereci envolta num grande laço de fumo. Não me lembro que livro lia nesse dia. Foste o único que me fez esquecer as palavras que não se dizem nunca, porque são ecos na mente dos que vivem dentro de si mesmos. Na mente dos que vivem como eu: ora longe, ora perto... Ora em parte nenhuma dos dias que não correm porque acorrentados ao tempo que não passa. Ao tempo que se arrasta em círculos no ponto de partida. Na mente dos que vivem as Zero Horas para sempre da mesma maneira.
Quando me afundo no sofá lembro-me do teu traçar de perna. De como eras despreocupadamente especial. De como não tinhas noção que quando me olhavas fazia-lo sempre de baixo. De como aquele beijo fez de mim gigante entre as nuvens. De como salvavas pessoas de si mesmas, com olhares rápidos e ternos, na avenida que intermediava a tua casa e o fim do mundo.
Se fechar os olhos sem força, vejo-te, de novo, a tirar a canção do bolso e pousá-la em cima da cama. De como mesmo quando já não estavas, ela se cantou sozinha para mim. Lembro-me sempre de ti assim: música no vazio, Luz em noites cerradas.
Hoje sinto o arder de quando me sorriste e disseste que desperdiçar café num estranho era uma arte só minha. Ainda me queimas com o simples facto de um dia termos existido ao mesmo tempo, no mesmo espaço, quebrando a Física. E agora, quando fecho os meus olhos sem força, com o mesmo amor de ontem, adormeço. Um sono intermitente, pequenino, ao som da música que me deixaste:
És o dedilhar de uma guitarra num final de noite que trago, em chamas, junto ao peito.